Introdução:
O desenvolvimento da identidade pessoal e vocacional aqui proposto tem por objetivo refletir em primeiro lugar, sobre a formação da identidade como pessoa e em seguida, como esta se torna uma identidade “vocacional” na vida de quem opta pela vida consagrada. Ambas (pessoal e vocacional) se tornam no sujeito uma só, como maneira de ser e relacionar-se com os outros e viver sua experiência humano-religiosa no mundo.
- Situando o problema da identidade.
O desenvolvimento da identidade pessoal ocorre durante um longo processo que se inicia nos primeiros anos de vida, quando a criança começa a distinguir-se dos outros objetos e pessoas. Começa a se perceber diferente dos demais. Lá pelos 2-3 anos, quando domina a fala e a locomoção, começa a referir-se a si própria apontando com o dedo para si quando alguém lhe pede para mostrar quem é a pessoa que tem seu nome. É uma identidade ainda rudimentar, principiante, mas que lança as primeiras bases para a construção de uma identidade mais definida que vai ocorrer no período da adolescência e início da juventude. Ela estará consolidada e bem definida quando o jovem é capaz de governar-se e orientar-se pelas próprias convicções, e ter formado um quadro referencial de reconhecimentos e de aceitação dos próprios limites, ao mesmo tempo em que respeita as diferenças que percebe nos outros. Tem um senso de autonomia e independência
- A subjetividade e a individualidade como fatores básicos da identidade pessoal.
Dois elementos inseparáveis na formação e consolidação da própria identidade vêm com a conquista da subjetividade e individualidade. Por subjetividade aqui entendemos todos os processos interiores de pensamentos e sentimentos (razão e emoção), mormente os emotivos, que dão uma tonalidade à maneira de ser do sujeito, que o distinguirá dos demais. Sua subjetividade se manifestará na maneira como lida consigo mesmo, como reage diante do mundo externo, como este se reflete em seu interior e como maneja suas emoções na forma de expressá-las ou reprimi-las. A subjetividade diz respeito, portanto, ao seu modo pessoal de interpretar o que acontece dentro de si e como percebe o mundo que entra em si e com o qual se põe em relação. Ao mesmo tempo em que vai tomando consciência de sua subjetividade também vai se apoderando de sua individualidade vendo-se como sujeito de sua história pessoal e sua unicidade irrepetível. Essas aquisições da subjetividade e da individualidade não ocorrem espontaneamente com o crescimento. Vários fatores podem favorecer ou dificultar esse processo ou mesmo impedir que se complete com relativo sucesso.
São freqüentes os casos de pessoas que mostram pouco senso de autopertença e percepção realista de quem realmente são. Há os casos mais sérios em que a identidade nem chega a se formar. São pessoas com uma identidade difusa (para não dizer confusa) manifestando-se totalmente dependentes das decisões alheias para se relacionarem com o mundo que as cerca. Têm dificuldade, por exemplo, de dizer com clareza o que realmente querem, sentem ou pensam. Mostram-se inseguras quando são forçadas pelas situações a tomarem alguma decisão. Se as tomam é sob forte pressão da ansiedade e sofrimentos interiores. Não sabem dizer quem são; pensam com a cabeça dos outros (“penso como ele”) e se tornam extremamente volúveis e dependentes de alguém. Como se vê, a formatação da identidade pessoal com os componentes subjetivos e individuais integrados não é decorrência lógica do crescimento biológico e etário.
- A pessoa em desenvolvimento – momentos-chave da construção da identidade.
Hoje, graças especialmente às ciências humanas e biológicas e de modo particular à psicologia, sabemos que o sujeito humano, desde seu nascimento, percorre fases que o caracterizam em momentos específicos de seu crescimento. Por exemplo, nos dois primeiros anos de vida ele deve percorrer o caminho da separação objetal até chegar a estabelecer uma relação realista com o mundo fora dele. Ao nascer não consegue distinguir-se das demais coisas/objetos que o cercam. Nos dois primeiros meses nem mesmo a mãe ele consegue ver como diferente de si, por isso vai ao colo de qualquer um e não estranha. É a fase do autismo, ele e o mundo são uma só coisa. Alguns meses depois já começa a perceber o outro como diferente de si, porém não consegue viver sem o outro ainda unido a ele. É a fase simbiótica onde o eu do outro é seu eu auxiliar. Superada essa fase consegue ver o “mundo externo” dividido em duas partes – o bom e o mau, porém separados. Ou tudo bom ou tudo mau. Estabelece uma cisão. A mãe é boa quando gratifica suas necessidades, a mãe é má quando não o atende. Só em torno de um ano e meio a dois anos consegue fazer a integração dos dois aspectos no mesmo objeto. O bom e o mau podem conviver juntos. Se esse processo não se conclui de forma satisfatória pode ocorrer que o indivíduo se fixe numa visão ou otimista demais (idealizações fantasiosas) desconectando-se da realidade objetiva e vivendo como que no “mundo da lua”, ou então, assume uma visão (com tão) pessimista, negativista diante da vida. Mesmo que o dia amanheça ensolarado e radiante, vai logo se preocupar com a possibilidade de à tarde chover e estragar tudo! Conseqüências dessa visão distorcida da realidade afetam suas relações com os outros e comprometem o próprio sucesso diante da vida.
Esses processos iniciais abrem caminho para a primeira identificação da criança que aprende a se distinguir dos demais objetos e começa a manifestar seus desejos e como quer ser quando crescer. Em geral, seus desejos identificatórios são de fazer o que o pai ou mãe fazem ou outra pessoa que lhe seja próxima afetivamente. Passa a imitá-las em algumas atitudes até mesmo copiando, às vezes, tiques. Nesta fase a imaginação e a fantasia predominam nas relações com os objetos e fazem-no ser capaz de ter os próprios sonhos de futuros que são embriões de futuros ideais mais realísticos. Com o despertar da curiosidade que o leva a querer saber os “porquês” de tudo isto, (x) encaminha-se para uma consolidação cada vez mais eficaz de si própria. Vai amadurecendo, assim, no aprendizado interacional com as outras crianças e seu companheirismo reconhecendo as semelhanças e diferenças entre si, e aceitando conviver com gostos e opiniões divergentes das suas. Essa assimilação que se dá, sobretudo nas relações lúdicas e nas trocas de experiências, o conduz ao momento de uma maior definição de sua própria identidade que ocorre na fase da adolescência. Nela, a aquisição da autonomia vai marcá-la como alguém independente e dona do próprio nariz. É bem verdade que ainda com prepotência e inseguranças misturadas, mas já sendo capaz de testar-se no confronto com os adultos que o querem submeter. Já não veste as roupas que a mãe quer ou separa para ele. Ele próprio põe aquelas que acha que mais lhe convêm, independente das convenções sociais dos adultos. Prefere identificar-se com seus ídolos porque estes lhe oferecem um retrato que quer desenhar para si como homem ou mulher independente, autônomo. Passada a adolescência, evolui para uma maturidade da própria identidade em que assume mais realisticamente a vida a partir de escolhas que faz e as assume com responsabilidade seja no mundo profissional como no afetivo. Define-se por uma profissão, é capaz de produzir bens e geri-los e de comprometer-se com alguém com quem quer compartilhar sua vida afetiva na forma de constituição de família ou optando por uma instituição cujos ideais o atraem, e ele os abraça também como seus e se “casa” com eles.
- Identidade religiosa como elemento característico de uma vocação.
Os que optam pela Vida Religiosa Consagrada devem incorporar em sua identidade pessoal uma identidade vocacional. Isso significa dizer que o sujeito que se põe no caminho da formação para a vida religiosa terá que fazer um processo de internalização de valores religiosos que serão marcas e forças que direcionam suas energias e capacidades, vivendo uma dimensão que extrapola suas necessidades humanas as quais devem ser integradas em seus ideais de vida. Ao consolidar-se na vocação religiosa, adquire uma identificação que se entremeia com a sua pessoal. Torna-se sua nova identidade ou identidade característica que o acompanhará para o resto da vida, a menos que refaça sua opção conduzindo-se por outros caminhos. A identidade vocacional, enquanto o sujeito a assume como válida para si, não lhe oferece aposentadoria, como ocorre enquanto profissional de alguma área. No que diz respeito à profissão, o sujeito deve se preocupar com um aprendizado, desenvolver habilidades de fazer coisas. Na profissão, o que conta é a competência, a experiência, a habilidade, a inteligência, a criatividade. Como profissional, cumpre seus 30 ou 35 anos de trabalho e se aposenta, deixa – se quiser – de trabalhar naquela área de sua competência e então adquire o direito de um provento para si, que teoricamente garante seu sustento e demais necessidades; porém, enquanto vocacionado, sua vocação permanece para sempre, e neste sentido sua identidade religiosa é perene. Pode deixar de exercer certas funções porque seus anos não lhe permitem mais, contudo, continua vocacionado até a morte. Para a vocação não há aposentadoria, porque ela é uma identidade que o caracteriza. Vocação tem a ver com um chamado e uma missão. Envolve a pessoa toda e tudo o que lhe diz respeito. Na vocação o que conta é o ser, isto é, como o sujeito vive suas convicções. Ela diz respeito ao sentido da vida, tem a ver com suas crenças que dão rumo a ela. Vocação tem a ver com o transcendente, tem a ver com compromisso de fidelidade com Deus que é origem da vocação.
- Manter uma identidade num mundo globalizado.
O grande desafio de hoje no mundo globalizado é manter-se firme nas opções feitas. Os estímulos e as mudanças rápidas são de tal ordem que é difícil processá-las todas. Mesmo com a atenção desperta, quando os cochilos provocados pelo estresse predominam, com certa facilidade se cai no relativismo do imediato. Se não tem uma identidade bem formada e consolidada, o sujeito se aliena, e a passividade e indiferença podem tomar conta, e ele fica à mercê daquilo que os formadores de opinião ditam para sua vida.
- Características de uma identidade religiosa sólida e sadia.
Uma identidade religiosa sólida e sadia se caracteriza por uma capacidade de fazer escolhas pessoais movidas pelas convicções profundas que não são abaladas pela cultura do imediato e prazerosas a todo custo. O sujeito se possui e se dá livremente aos outros, norteando-se por princípios que lhe imprimem uma ética e moralidade. Respeita e luta por valores da convivência humana como justiça, direitos, paz… e vive valores morais e religiosos que expressam em sua forma de crer e de relacionar-se com o transcendente. Não despreza o humano em si, mas o acolhe e cuida como dom que é oferecido e compartilhado no que faz e vive. Mostra-se sereno mesmo diante daqueles que pensam de modo diferente do seu, não se escandaliza quando um coirmão abandona a própria vocação ou redimensiona-a em outras escolhas, nem o execra à perdição. Compadece-se com o sofrimento alheio e é prudente nos julgamentos que emite. Não se compraz com os fracassos dos outros e sabe aceitar os seus com humildade e reconhecimento. Mantém-se fiel aos seus princípios, mesmo quando as situações podem ridicularizá-lo. Transmite paz e alegria, pois não pretende ser melhor que os outros e se alegra com os sucessos deles. Mantém um equilíbrio entre suas emoções expressas com controle e suas idéias e pensamentos. Continua aberto para aprender e ser criativo no modo de gerir sua vida e naquilo que propõe aos outros. Aceita a idade que tem, desfrutando-a dentro das condições e oportunidades que o cercam. Está satisfeito consigo por ter consciência de ter vivido suas fases da vida como elas aconteceram e pelos ensinamentos que absorveu. Não nega seu passado por mais pesaroso que tenha sido, porque acredita ter sido o protagonista da própria história com seus altos e baixos, mas é esta história que viveu e lhe pertence. Sabe perdoar os que o magoam ou ofendem, não guardando rancor e nem desejo de vingança. Reconhece suas fraquezas e as aceita, não as vendo como empecilho para sua felicidade, mas as integra na aceitação de sua humanidade frágil, porém capaz de sobreviver a elas porque apoiado nas suas convicções maiores.
Conclusão:
A complexidade do processo da formação da identidade pessoal, nos seus meandros e sutilezas, permite, aos poucos, identificar um sujeito como único e original. Neste processo, quando faz uma escolha vocacional, esta imprime nele um novo modo de ser em sua originalidade, que afeta e repercute no modo de viver sua vida. Quando sua escolha se dá no âmbito da vida consagrada sua identidade se reveste de uma faceta perenística que exige dele uma postura de permanente atenção na vivência de sua dinâmica no mundo (globalizado) em contínuas mudança. Os novos paradigmas que surge daí expõem sua identidade vocacional a novas adaptações para poder continuar sendo significativa como identidade pessoal vocacionada.
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