Aspectos psicopedagógicos

  1. Siro Stocchetti MCCJ

Ser autêntico significa ser verdadeiro e livre para viver o que somos chamados a ser e viver, em harmonia com nossa identidade ontológica e, assim, ser testemunhas confiáveis do amor de Deus.

A formação, tanto inicial quanto continua, é eficaz se ajuda a crescer em autenticidade por meio da atenção à interioridade, à consciência, a fim de assumir com paixão nossa vocação e missão a serviço do Reino, no exercício diário do discernimento espiritual pessoal.

  1. O QUADRO DE REFERÊNCIA

Pode ser útil esclarecer alguns conceitos, referência necessária à ação psicopedagógica no caminho do crescimento na autenticidade, em um contexto cultural caracterizado por uma comunicação ambígua, expressão de uma estratégia manipuladora, a serviço dos poderes econômicos e ideológicos.

1) Autenticidade e espontaneidade

Na mentalidade atual, alimentada pela propaganda da mídia, há a tendência a identificar autenticidade com espontaneidade. Ser autêntico é ser coerente com o que se sente e se pensa, com as próprias necessidades e impulsos. Não ser espontâneo, fazer algo contra o querer emotivo, não dar rédea solta às emoções é estigmatizado como inautenticidade: “Se eu fizer algo quando não estiver com vontade, estarei sendo hipócrita“. “Por que me sacrificar pelos outros? Por que abrir mão do que me faz feliz?” O equívoco é de identificar felicidade com gratificação.

A espontaneidade não pode ser confundida com a autenticidade. Expressão do estado físico e emocional, muitas vezes é orientada pelos impulsos, corre o risco de ser uma atitude egoísta, centrada no próprio ego.

Ser autêntico pode ir na direção oposta à espontaneidade. A responsabilidade pela família muitas vezes leva a pessoa a se sacrificar, a renunciar ao que pode ser emocionalmente mais gratificante. A lealdade com a própria vocação frequentemente não se encaixa com o emocional e o impulsivo: ela exige a frustração de impulsos e desejos que levariam à incoerência e à inautenticidade.

 

2) A autenticidade corresponde à verdade

Uma pessoa é autêntica se for verdadeira, ou seja, se estiver em harmonia com a verdade que lhe é própria. Ser autêntico não se reduz a dizer e fazer o que se acha certo: isso nem sempre é expressão de sua verdadeira identidade, daquilo que identifica o ser humano.

O ser humano é feito para o dom, que expressa e implementa sua dimensão de transcendência. (…) A criatura humana, sendo de natureza espiritual, se realiza nas relações interpessoais. Quanto mais autenticamente ela os vive, mais sua identidade pessoal amadurece. Não é se isolando que a pessoa humana se realiza, mas entrando em relação com os outros e com Deus.”[1]

O projeto de Deus Criador, impresso no ser da pessoa humana, é fazer do dom recebido da própria vida um dom para os outros, assumir a própria natureza relacional, viver a comunhão em resposta ao chamado do Senhor.

A vida religiosa expressa sua vocação profética por meio do testemunho sereno e autêntico da fraternidade, tornando-se uma epifania do Reino. O mundo precisa desse testemunho, como um autêntico caminho de humanização.

 

3) Sinceridade e verdade

Sinceridade não é sinônimo de verdade. Se pode ser sincero sem ser verdadeiro: a sinceridade pode não corresponder à objetividade da verdade. Ser sincero é expressar o que se sabe ou se acredita ser a verdade, que, porém, pode ser parcial ou distorcida.

Pode-se ser sincero

– ao dizer “eu quero bem a mim mesmo“, sem estar ciente do desprezo inconsciente a si mesmo

– ao afirmar que perdoei, mas o ressentimento reprimido continua presente, manifestado pela falta de afabilidade com aqueles que causaram sofrimento

– ao pensar que a minha ajuda é expressão de um valor evangélico, quando inconscientemente ela é motivada pela complacência.

Podemos nos convencer de que:

– na vida, a felicidade é a meta a ser alcançada

– a autorrealização é o caminho para a felicidade

– o cuidado com a imagem é o que conta

– a apreciação dos outros é a medida do próprio valor

– o interesse pessoal tem prioridade sobre o interesse da comunidade.

A perspectiva do Evangelho apresenta a verdade do ser humano de uma maneira muito diferente:

Porque quem quer salvar a própria vida, perdê-la-á; mas quem perder a própria vida por amor de mim e do evangelho, esse a salvará. Pois que vantagem há para o homem ganhar o mundo inteiro e perder sua própria vida? O que poderia dar em troca da sua própria vida?” (Mc 8,35-36). “Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; mas, se morrer, dá muito fruto” (Jo 12,24). “A vida cresce e amadurece na medida em que a doamos pela vida dos outros.”[2]

Na perspectiva do Evangelho, a felicidade não é o objetivo da existência, mas a consequência de viver de maneira autêntica.

 

4) Liberdade interior e autenticidade

A liberdade interior é expressão de autenticidade quando é orientada pelo sentido dado à própria existência: toda decisão é tomada com responsabilidade, em sintonia com este mesmo significado. È:

liberdade de, como a capacidade de autonomia em relação às próprias limitações, impulsos, emoções e hábitos

liberdade para, voltada para um claro objetivo: o bem buscado e vivido com responsabilidade

liberdade na presença do Senhor, que motiva a consciência e a responsabilidade.

O crescimento psicológico, por meio do autoconhecimento e da autoaceitação da própria humanidade, mesmo em seus aspectos de fragilidade, é uma experiência de liberdade de.

O crescimento espiritual é experiência da liberdade para a meta dada pelo projeto de vida e de liberdade na presença do Senhor que chama e envia, para a comunhão com a comunidade de pertença e com a Igreja,

 

 

  1. FORMAÇÃO PARA A AUTENTICIDADE

 

Como cristãos e pessoas consagradas, somos chamados a testemunhar, com a vida, o verdadeiro sentido da existência: o Evangelho como caminho de humanização. Nossa credibilidade depende de nossa autenticidade.

“O homem contemporâneo escuta com mais disposição as testemunhas do que os mestres ou, se escuta os mestres, o faz porque eles são testemunhas. São Pedro expressou isso muito bem quando descreveu a beleza de uma vida casta e respeitosa que “conquista sem necessidade de palavras aqueles que se recusam a acreditar na Palavra” (1 Pe 3,1). É, portanto, por meio de sua conduta, de sua vida, que a Igreja, antes de tudo, evangelizará o mundo, ou seja, por meio de seu testemunho vivido de fidelidade ao Senhor Jesus, de pobreza e desapego, de liberdade diante dos poderes deste mundo, em uma palavra, de santidade”.[3]

A formação para a autenticidade, por meio de uma formação personalizada, deve ser orientada pela clareza antropológica, integrar a dimensão psicológica e ancorar-se na vida espiritual, mantendo viva a perspectiva da missão.

A clareza antropológica, fundamentada na Sagrada Escritura e nos ensinamentos da Igreja, não pode ser considerada um dado adquirido. Não estamos imunes à influência da cultura atual, marcada pelo relativismo e pela permissividade, definida como cultura da pós-verdade, em que o egocentrismo e a autorreferencialidade são apresentados como normais e legítimos.

A formação, tanto inicial quanto continua, orientada para a autenticidade, deve propor e acompanhar, ao longo da vida, a jornada:

– da exterioridade à interioridade

– da sinceridade à verdade

– do egocentrismo ao encontro

– da espontaneidade à autenticidade

– da cabeça ao coração

– da dispersão à integração.

A ação formativa é eficaz se prestar atenção a esses elementos: interioridade, consciência, paixão pelo Reino e discernimento espiritual pessoal na vida cotidiana.

 

1) Interioridade

A interioridade, lugar decisivo para o homem no caminho para a verdade, é a capacidade de voltar para dentro de si mesmo, para compreender o sentido das ações realizadas e que se realizam, porque só no íntimo se pode avaliar e julgar“. (Card. Martini)

A interioridade, que não deve ser confundida com o intimismo, refere-se ao mais íntimo da pessoa, à sua verdadeira identidade. Jesus no Evangelho chama constantemente à interioridade (cf. Mt 6,6) e a Virgem Maria é o seu ícone, porque concebeu o seu Filho no coração antes mesmo do corpo.

A mais bela definição de interioridade é o espaço de encontro: consigo mesmo, com Deus, com o irmão, com a comunidade, com a realidade, a missão e a natureza. Quando este espaço é pequeno, estreito, confuso, o encontro torna-se difícil.

A nossa interioridade é habitada por: emoções, sentimentos, necessidades, impulsos, feridas, imagens, fantasias, memórias, desejos, pensamentos, valores e ideais. Estes elementos, num caminho de integração, devem ser reconhecidos (daí a importância do autoconhecimento) e canalizados em harmonia com os valores evangélicos e a vocação especifica recebida do Senhor.

 

2) A consciência

A consciência (= estarmos conscientes) consiste em tornar-nos transparentes à “verdade profunda“: sobre nós mesmos (coração, mente e vontade), sobre os outros, sobre os acontecimentos e sobre Deus. É o fruto do conhecimento de si.

O crescimento na interioridade leva ao crescimento da consciência do que está presente no próprio interior. Isto, por sua vez, abre o espaço da interioridade.

A pouca interioridade leva à dispersão, analgésico necessário para sobreviver numa situação de alienação, para evitar enfrentar o vazio e a falta de sentido. Nesta situação, os valores proclamados não têm impacto na vida, perde-se a autenticidade e a credibilidade do próprio testemunho.

A ação educativa, na formação inicial e continua, para ser eficaz, deve ser personalizada, dar atenção à pessoa na sua singularidade. A entrevista educativa pessoal (= colóquio) oferecida com regularidade e competência é o instrumento privilegiado para isso.

 

3) A paixão pelo Reino

“É sempre necessário cultivar um espaço interior que dê sentido cristão ao empenho e à atividade. Sem momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero com o Senhor, as tarefas esvaziam-se facilmente de sentido: nos enfraquecemos com o cansaço e as dificuldades, e o fervor extingue-se”.[4]

A missão, segundo o carisma de cada Instituto, deve estar sempre no horizonte para que a ação educativa seja eficaz. Ela representa a estrela polar de todas as decisões e opções, na espiritualidade, nos compromissos pastorais, na formação intelectual e profissional.

Ter os olhos fixos na missão significa ter os olhos fixos em Jesus missionário do Pai, sentirmo-nos seus companheiros de missão, para continuá-la no meio dos desafios e dificuldades.

Paixão é energia que unifica; manifesta interesse, atração, entusiasmo, abertura, dinamismo e vitalidade. A paixão por Jesus Cristo é paixão por sua missão, pelos pobres e necessitados, pela vida, pelo crescimento do Reino de Deus. É força descentralizadora: leva ao encontro.

Quando a missão desaparece do horizonte, se perde o significado da vocação, com a probabilidade de sermos infiéis ao chamado. Quanto mais a missão traz desafios, mais a pessoa é provocada a ser criativa, corajosa e motivada.

 

4) Discernimento espiritual pessoal na vida cotidiana

O discernimento é um dom do Espírito. Ele deve ser pedido com humildade e perseverança, nutrido e cultivado com responsabilidade, em uma jornada que é aprendida ao lado de um guia espiritual.

O discernimento espiritual pessoal na vida cotidiana é a condição para o discernimento comunitário e o discernimento em momentos importantes da vida. É a bússola da vida espiritual, a busca da vontade de Deus, do verdadeiro bem. É distinguir nos pensamentos, nas emoções, nos sentimentos e nas motivações, o que é útil e valioso de acordo com o Espírito, do que é inútil e prejudicial porque é impulsionado pelo mal espírito.

O discernimento espiritual pessoal leva à transformação progressiva do olhar sob a luz do Espírito, a olhar e avaliar tudo sob Sua perspectiva.

Para sermos autênticos, em fidelidade à vocação e à missão recebidas do Senhor, é indispensável cultivar o discernimento na vida cotidiana, pois nossa interioridade, como já foi lembrado, é habitada por um emaranhado de emoções e impulsos. A consciência do que, no íntimo, nos leva à ação ou a bloqueia é fundamental para não sermos por isso condicionados, para podermos discernir o verdadeiro bem e assim orientar a ação; condição para o crescimento na liberdade dos impulsos internos e externos, na luta contra a tirania da emotividade, da impulsividade e da gratificação fácil e imediata.

 

Conclusão

O caminho para a verdade e autenticidade começa com a admissão de que sempre necessitamos de conversão, que nunca nos conheceremos plenamente, que as nossas motivações, mesmo as mais espirituais, podem ser ambíguas. Não chegamos à verdade sem uma atitude sincera de humildade.

A humildade aproxima-nos da autenticidade, da genuinidade e da verdade. A verdade torna-nos livres (cf. Jo 8,32), livres para amar no dom de nós mesmos.

O objetivo da formação é ajudar a pessoa a crescer em liberdade para uma assimilação mais profunda dos ideais e valores de Cristo, na experiência de um encontro pessoal com Deus, Pai de Amor e Senhor da Vida.

A integração é o meio para crescer na configuração com Cristo, como resposta à própria vocação ontológica e específica. Isto dispõe-nos a um dinamismo que, cultivado, continua mesmo depois da formação inicial, fazendo da vida uma oportunidade constante de formação continua.

 

[1] Benedito XVI, Caritas in Veritate, 34, 53.

[2] Francisco, Evangelii Gaudium, 10.

[3] Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, 41.

[4] Evangelii Gaudium, 262.

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